O Brasil convive com uma contradição que insiste em não ser enfrentada. Enquanto se orgulha de sua herança cultural diversa, continua permitindo que religiões de matriz africana sejam alvo de ataques que ultrapassam a intolerância e revelam um problema mais profundo, o racismo religioso. Os episódios recentes em Aracaju e São Paulo expõem, de forma evidente, que não se trata de casos isolados, mas de um padrão que o país ainda reluta em reconhecer.
No terreiro Ìlé Àsé Ìyá Osún, em Aracaju, a invasão seguida de depredação e furto de objetos sagrados foi mais do que um ataque ao patrimônio material de uma comunidade, foi um recado violento sobre quem, na prática, continua sendo considerado legítimo no exercício da fé.
Em São Paulo, a simples representação infantil de Iansã, que deveria ser tratada como expressão cultural, resultou em intimidação policial. Quando símbolos afro-religiosos provocam reações tão desproporcionais, é impossível ignorar que a raiz do problema está no racismo estrutural que molda a percepção sobre essas tradições.
A pesquisa Respeite o meu terreiro apenas confirma o que lideranças religiosas denunciam há décadas. Oito em cada dez terreiros relataram casos de racismo religioso. Ataques verbais, depredações, ameaças, violência física e até abordagens policiais discriminatórias se repetem com regularidade. Mais da metade das casas também sofre agressões no ambiente digital, o que amplia o alcance da violência e reforça a sensação de vulnerabilidade. A despeito da gravidade, poucos procuram a polícia, o que também evidencia uma clara falta de confiança na resposta institucional.
Diante desse cenário, insistir na narrativa de que vivemos apenas “intolerância religiosa” é insuficiente. O termo dilui a dimensão racial que sustenta esses ataques e evita nomear o que realmente acontece: um tipo específico de discriminação que mira, simultaneamente, a fé e a identidade de pessoas negras. Não reconhecer isso significa perpetuar a impunidade.
A apresentação do levantamento na ONU, em parceria com o Ministério dos Direitos Humanos, aponta para um avanço simbólico, mas é necessário que esse movimento se desdobre em políticas públicas efetivas. A fala de Mãe Nilce, responsável pela pesquisa, é um alerta: invasões, destruições, assassinatos e perseguições continuam ocorrendo “apenas por fazer parte de uma religião não cristã”.
O país não pode aceitar que a liberdade religiosa, um direito constitucional, seja seletiva.

