Dimas Ramalho
Era 1988 quando o Brasil deu um passo decisivo rumo à democracia. Recém-saído de duas décadas de ditadura, o país escrevia uma nova Constituição, moldada pelos ideais de justiça, inclusão e dignidade. Naquele momento histórico, uma frase ecoou com força e esperança: “Saúde é direito de todos e dever do Estado.” Nascia ali, mais do que um artigo constitucional, um compromisso com a vida.
Dois anos depois, em 19 de setembro de 1990, esse lema ganharia corpo e substância com a criação do Sistema Único de Saúde –o nosso SUS.
Agora, em 2025, ao completar 35 anos de existência, o SUS pode ser considerado uma das maiores invenções coletivas do povo brasileiro. Em um país marcado por desigualdades sociais gritantes, ele é o elo que une milhões de pessoas em torno de um ideal comum: o acesso gratuito e universal à saúde. Não importa se você está no sertão nordestino, na periferia das grandes cidades ou numa aldeia indígena da Amazônia. O SUS está lá –cuidando, vacinando, tratando, prevenindo.
Não existe no mundo um sistema com tamanha capilaridade e abrangência. E ele não se limita a hospitais: está nas Unidades Básicas de Saúde, nas ambulâncias do Samu, nos centros de saúde mental, nas salas de vacinação, nos laboratórios de vigilância sanitária, nas farmácias populares e nas unidades de pronto-atendimento.
Embora seja para todos, é sobre os mais vulneráveis que recai sua importância mais decisiva: para milhões, o SUS é a única porta aberta para cuidar da saúde.
Ao longo dessas três décadas e meia, o sistema acumulou vitórias que transformaram o Brasil. Foi assim quando, num gesto corajoso, o país decidiu distribuir gratuitamente medicamentos antirretrovirais para pessoas vivendo com HIV/AIDS, desafiando o mercado e salvando milhares de vidas. Foi assim quando criou um dos maiores programas públicos de transplantes do planeta. Em 2024, bateu recorde: 30.303 transplantes de órgãos e tecidos, 85% totalmente financiados pelo SUS.
Se hoje o Brasil é exemplo mundial na luta contra o tabagismo, com uma das menores taxas da América Latina, isso se deve a políticas coordenadas entre vigilância sanitária, campanhas educativas e apoio ao tratamento, todas lideradas pelo mesmo sistema que também se tornou essencial nas emergências médicas com o Samu 192, levando atendimento pré-hospitalar rápido a lugares onde, antes, ninguém respondia aos gritos por socorro.
Mas é na base que acontece a revolução mais silenciosa. A Estratégia Saúde da Família, modelo de atenção primária utilizado no Brasil desde 1994, acompanha o cidadão desde o nascimento, prevenindo doenças, monitorando condições crônicas e formando vínculos duradouros entre profissionais e comunidades. É ali que a saúde começa de verdade, nos pequenos gestos, nos acompanhamentos de rotina, na escuta atenta de quem cuida.
A força do SUS também se expressa na vacinação infantil. Graças ao Programa Nacional de Imunizações, o Brasil erradicou doenças como a poliomielite, tornando-se exemplo mundial em campanhas de vacinação em massa.
Mas o sistema também enfrenta desafios profundos e persistentes. O mais estrutural deles é o subfinanciamento crônico. Desde sua criação, o sistema opera com menos recursos do que necessita. As verbas, embora crescentes em valores nominais, não acompanham plenamente as necessidades demográficas, epidemiológicas e tecnológicas. A judicialização crescente, com decisões que obrigam a compra de medicamentos fora da lista oficial, impõe custos imprevisíveis.
Segundo estimativas da Instituição Fiscal Independente, o gasto com saúde pública precisará crescer cerca de R$ 10 bilhões anuais nos próximos anos, ou 3,9% ao ano, para garantir um SUS minimamente adequado à demanda da população. Sem esse acréscimo, o sistema continuará convivendo com filas longas, espera por exames, carência de profissionais e infraestrutura deficiente, especialmente nas regiões mais pobres.
Mesmo assim, o SUS resiste. Porque é sustentado não apenas por recursos públicos, mas por uma legião de profissionais dedicados, por comunidades que participam de conselhos de saúde, por movimentos sociais que pressionam por melhorias e, sobretudo, por uma população que aprendeu enxergá-lo como um patrimônio coletivo.
Durante a pandemia de Covid-19, o SUS mostrou toda sua força. Foi ele quem estruturou a testagem, os leitos de UTI, o rastreamento de casos e, principalmente, a vacinação em massa. Em meio ao caos, o SUS foi abrigo. Foi escudo. Foi esperança. E provou, mais uma vez, que um país sem sistema público de saúde forte está à mercê da tragédia.
Agora, aos 35 anos, o SUS precisa mais do que homenagens. Precisa de compromisso. É hora de romper com as amarras do subfinanciamento, fortalecer a atenção primária, investir em ciência e inovação, valorizar seus trabalhadores e qualificar a gestão pública com foco em eficiência e transparência. É hora de enxergar o Sistema Único de Saúde não como um custo, mas como um investimento em vidas, em cidadania, em futuro.
O SUS não é perfeito, mas uma obra em eterna construção –coletiva, democrática, viva. E cabe a todos nós zelar por ela. Porque onde houver um posto de saúde funcionando, uma vacina sendo aplicada ou uma ambulância salvando alguém, ali estará o SUS cumprindo sua promessa.
Dimas Ramalho é vice-presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.