Há uma linha muito clara que separa quem luta pela justiça de quem contribui para a perpetuação da violência. E, quando essa linha é atravessada por alguém que deveria ser voz ativa na defesa das mulheres, o cenário deixa de ser apenas lamentável — ele se torna revoltante. Mais do que uma opinião isolada, a declaração de uma vereadora dizendo-se “a favor da violência contra a mulher” escancara um abismo entre o que se espera de uma representante pública e o que, de fato, ela entrega à sociedade.
O papel de uma parlamentar, sobretudo mulher, não é apenas simbólico. Ela carrega em sua fala e em suas ações o poder de transformar realidades. E, ao afirmar que, em certas situações, a mulher “merece” ser agredida, essa vereadora não só banaliza a dor de milhares de vítimas como reforça o discurso que sustenta a impunidade e o medo. Em vez de acolher, ela julga. Em vez de proteger, ela autoriza. Em vez de lutar por políticas públicas, ela legitima o agressor.
No Brasil, a violência contra a mulher é uma epidemia silenciosa que se espalha dentro de casa, entre quatro paredes, diante dos olhos dos filhos, dos vizinhos, da sociedade inteira. Diariamente, milhares de mulheres são empurradas, espancadas, insultadas, violentadas. E, mais grave ainda, muitas dessas violências são naturalizadas, vistas como parte de uma rotina doméstica que não deve ser questionada. Há quem diga que é briga de casal, que ninguém deve se meter. E há, agora, quem diga, em pleno plenário, que a agressão pode ser justificada.
Quando uma figura pública verbaliza esse tipo de pensamento, ela dá permissão. Ela alimenta a cultura que diz que mulher “provoca”, que “tem que saber se comportar”, que “apanhou porque fez por merecer”. Ela enfraquece anos de luta, desrespeita as conquistas legais e empurra as vítimas de volta para o silêncio. A mulher que apanha passa a pensar que talvez seja culpa dela. E o agressor ganha o respaldo que procurava: se até uma vereadora pensa assim, por que ele seria punido?
Não é admissível que alguém eleita para servir à população use sua posição para reforçar estigmas e discursos violentos. Isso não é liberdade de expressão. Isso é compactuar com o crime. Isso é falhar com as mulheres que enfrentam o medo todos os dias e que depositaram nela o seu voto de confiança nas urnas. Isso é abandonar a responsabilidade mais básica de quem assume um cargo público: cuidar das pessoas.
Não é só sobre uma fala infeliz. É sobre a dor que ela reativa. É sobre as vidas que ela pode colocar em risco. Porque, quando se naturaliza a violência, o próximo tapa não será visto como violência. Será visto como correção. Quando se relativiza a culpa, a próxima vítima será vista como responsável. E a próxima morte será só mais um número que ninguém vai lembrar.
A indignação precisa ir além da manchete. É preciso reação, responsabilização e urgência. É preciso que os parlamentos, os partidos, os eleitores e a sociedade como um todo digam em voz alta: não, não aceitaremos que representantes do povo legitimem a violência. E, principalmente, é preciso lembrar que, cada vez que alguém com poder compactua com o agressor, ela mesma se torna parte da agressão.
A luta contra a violência de gênero não se faz com conivência. Se faz com coragem.